O Urso e o Texugo


O Sr. Urso não era um bicho de muitos amigos. Enquanto todos no bosque preferiam se reunir para longas conversas à tarde, ele preferia estar a sós, em sua caverna, lendo os livros que herdara do pai. O lugar onde vivia só era aconchegante, com uma bela lareira escavada na pedra, um tapete vermelho de lã em frente a ela, uma cama de solteiro e estantes de livros… seus melhores companheiros. O Sr. Urso devorava cada um, noite após noite, e por causa disso foi obrigado a procurar novas leituras. O único bicho no bosque que tinha tantos livros quanto ele era o Seu Texugo, um velho animal de bigodes brancos e costas arqueadas que vivia próximo a ele e que fazia a loucura de emprestar livros (o Sr. Urso considerava esse ato uma insanidade).
Involuntariamente, o Sr. Urso começou uma amizade com o velho Texugo, já que ambos tinham muitas coisas em comum: viciados em leitura e viviam sós. A Dona Texugo falecera há poucos meses e, para o viúvo, ter companhia era ótimo. Fora que, por ser muito idoso, o ancião precisava de ajuda com coisas domésticas, um auxílio que o grande amigo prestava. Somente uma coisa no Seu Texugo o Sr. Urso não gostava. O Sr. Urso era o que chamava de “animal racional”, ou seja, encarava as situações em sua “pura verdade”, crendo apenas naquilo que podia analisar e considerar real. Seu Texugo, por outro lado, acreditava que havia algo mais, algo além do que ele podia ver, cria que todos os bichos naquela floresta foram criados pelo que ele chamava de Criador e que cada um tinha uma parte de si que não morria. Mesmo assim, o Sr. Urso mantinha-se firme na ideia de que ele era criação da casualidade, fruto de escolhas de seus pais, não de um ser acima dele. Todas as manhãs de quarta-feira ele levava um livro para a casa do Sr. Texugo, com ideias de outros pensadores, bichos que acreditavam no mesmo que ele.
Naquela quarta-feira o Sr. Urso tomou sua bengala e monóculo e, no frio do final de outono da floresta, saiu ao encontro da casa de Seu Texugo. O velhinho habitava numa velha árvore da floresta, tão grossa que seriam necessários cinco ursos para abraçá-la. O tronco era oco, o que fazia Seu Texugo ter bastante espaço por dentro. Teve que aumentar a porta para que o Sr. Urso pudesse entrar e mandar colocar uma cadeira grande o suficiente que não quebrasse, assim o grande amigo possuía um lugar só para si. Várias luminárias davam uma cor alaranjada ao ambiente. A casa era de um cômodo só. No mesmo lugar havia uma cama de casal de palha, um fogão a lenha, uma mesa redonda e é claro, várias prateleiras de livros pregadas às paredes. Sabendo que seu velho amigo estava prestes a chegar, preparava um chá. Assim que ouviu as batidas na porta, não precisou perguntar quem era, seu visitante era muito pontual. Abriu a porta, deixando o vento entrar acompanhado do Sr. Urso.
– Com licença, meu caro – disse ele, retirando o cachecol. – O inverno está se aproximando… sinto até mesmo o sono se aproximando.
– Aaah sim – respondeu o velho Texugo fechando a porta e indo verificar o chá –, logo a hibernação começará. Espero que tenhas preparado tudo, são longos dias de soneca.
– Claro que sim, abasteci bem a caverna com mantimentos que serão comidos pouco antes de começar o inverno. Bem, não estou aqui para isso… vim para falar de livros, não de minha natureza.
O urso assentou-se em sua cadeira de olmo, aceitando a xícara com a bebida quente recém preparada pelo velho amigo. Seu texugo puxou para perto uma cadeira com um livro sobre. Entregou ao amigo antes de assentar-se. O Urso entregou-lhe um outro livro escrito pelo Coelho dos Arbustos, chamado “Poemas para a Solidão”. Seu Texugo riu e disse:
– Mas eu não estou sozinho.
– Eu não estou aqui cem porcento das vezes, achei que seria melhor para você se entreter – disse o Sr. Urso, analisando o livro que recebera emprestado. Não tinha nome, somente uma capa preta e folhas amareladas. Abriu e leu, na contra capa, “A Carta do Criado”. Olhou para o velho que, com um meio sorriso, disse:
– Ele tem sido meu companheiro há muitos anos.
– O livro?
– Quem fala através dele.
O Sr. Urso deu uma risada, erguendo uma sobrancelha, dizendo:
– Você sabe a minha opinião sobre isso… Por que iria me emprestar sabendo que não creio?
O ancião suspirou e disse:
– Sinto que esse é meu último inverno. Vou lhe deixar todos os meus livros. Infelizmente eu e a Dona Texugo não pudemos ter filhos, então gostaria de deixar tudo para você. Mas, em especial, gostaria que guardasse este livro. Ele mudou minha vida. É um presente.
O Sr. Urso olhou ao redor. Devia ter mais de mil livros naquela árvore e, de todos, aquele era o mais valioso para Seu Texugo. O seu coração se entristeceu de uma forma maior do que ele esperava ao ouvir aquela notícia. Sabia que o velho um dia morreria, mas não esperava ter que lidar com isso de forma tão calma e, ao mesmo tempo, abrupta. Ele olhou para a exemplar sobre o colo e disse:
– Agradeço mesmo, livros são presentes muito preciosos. Mas…
– Você não crê no que não pode ver… Sim, já tivemos essa conversa antes. Tudo o que eu creio está nesse livro… o Criador fala comigo através dele.
– Como? Você o escuta? Você o vê? Como sabe que ele fala apenas lendo?
– Assim como ele testemunha ao meu espírito que sou seu filho, ele testemunha outras coisas. Uma delas é dar-lhe este livro, porque meu tempo está acabando.
– Se ele se preocupa tanto, por que irá levá-lo? – O Sr. Urso viu que havia desespero em sua voz e respirou fundo antes de dizer: – Por quê?
Seu Texugo soltou um riso fraco, porém jubiloso. Ele colocou a pata sobre o joelho do amigo e disse:
– Meu rapaz, para mim isso não é o fim.
O Urso levantou-se, quase batendo a cabeça no teto, apontou para o livro que recebera e disse:
– O senhor realmente vai morrer crendo em algo invisível? – percebendo sua exaltação, o Sr. Urso sentou-se novamente e disse num tom de voz mais calmo: – Isso me parece muita perda de tempo… me perdoe por expressar-me dessa forma.
Seu Texugo tomou um gole de chá, como se não tivesse escutado uma suposta acusação, antes de responder:
– O que você sente por mim, meu caro rapaz?
O Sr. Urso ficou confuso, jamais alguém fizera perguntas assim para ele. Nem mesmo seus pais costumavam falar muito sobre sentimentos. Para ele isso não era tão relevante quanto estudar as estrelas, os astros, a natureza… sobre sentimentos, restringia-se a lê-los em poesias, não a proclamá-los. Ele disse:
– Não sei muito bem como responder a isso…
– Bem, eu sei! – disse o Texugo colocando a xícara na mesa – O que eu sinto por você é o amor de uma amizade.
– Amor?
– Você nunca amou alguém?
– Além de meus pais… não… quero dizer… não sei muito bem como isso é.
– Na verdade sabe. Você vem aqui, toda quarta-feira. Sei que vai além de querer ler livros. Sempre antes de ir, você concerta algo, me diz se precisa de algo no bosque que você irá buscar. Isso são atitudes de amor. Amor não é um sentimento, e sim uma escolha que é repleta de atos. Além do mais você escolheu amar alguém que gosta. No caso: eu.
O Sr. Urso ficou em silencio por um tempo. Jamais havia notado aquela verdade. Nunca tivera um amigo que se importasse tanto com ele… na verdade, jamais tivera um amigo. Entendeu a razão de doer saber que o perderia. Ele não quis chorar, então, olhando para cima por um segundo, disse:
– Onde quer chegar com isso?
– Na verdade… Você consegue o sentimento que tem por mim? Consegue vê-lo, tocá-lo, cheirá-lo, senti-lo ou ouvi-lo?
O Sr. Urso entendeu onde o amigo queria chegar e disse:
– Em suas atitudes, sim. Por exemplo, através desse chá e desse momento. Posso ver o chá que fizestes para mim, tocá-lo, cheirá-lo, senti-lo… posso ouvir você falando comigo nesse bom tempo que temos.
O Texugo sorriu e disse:
– Você está falando de manifestações da amizade e não da própria causadora em si. Eu vejo, ouço, sinto, cheiro e toco o bosque que, para mim, é a manifestação do amor do Criador, mas não Ele em si. Ela manifesta a sua Glória e, para mim, manifesta sua realidade. É como ver tudo isso sobre o chá e esse momento e dizer que não tem ninguém por trás… que o chá se fez por ele mesmo.
– Mas um chá não pode ser comparado ao universo.
– Por que não? Se alguém fez o chá, por que alguém não faria o universo que é muito maior?
– Porque o criador do chá está aqui, se manifestando, enquanto o do universo não dá as caras e não prova a sua realidade. Logo, se o autor de uma obra não se manifesta a sua criatura, como sabermos que a ele pertence?
– Aí voltamos ao início da conversa… Para mim ele se manifesta da mesma forma que o amor revelado por ti a minha pessoa. Diga-me: você pode mostrar aos outros a sua amizade por mim? Com isso não digo os atos dela, e sim sua essência. Ela surgiu porque você se aproximou de mim, logo eu posso senti-la, mesmo que os outros não possam. Da mesma forma, o Criador, através desse livro em seu colo, se aproximou de mim e nutriu o amor Dele. Não é algo que eu possa provar para ti… é algo que você pode provar. Tente. Leia o livro de coração aberto, assim como eu abri a porta da minha casa, faça o mesmo. Prove por você mesmo.
O Sr. Urso permaneceu mais um pouco naquele lar. Seu Texugo não tocou mais no assunto, mudou de tema, começando a falar das lembranças da esposa. O Sr. Urso, por outro lado, não parava de pensar no livro sobre o seu colo. “O que sentiu aquele velho bicho que o segue até o último dia de sua vida?”. No fim da tarde o velho Texugo entregou seu testamento e as chaves da casa. O Sr. Urso chorou na porta. Seu Texugo pediu que ele se abaixasse para que pudesse olhá-lo nos olhos. Ele disse:
– Se ler esse livro de coração aberto, saberá que não é um adeus.
O Sr. Urso tomou o caminho de casa, deixando um livro e levando outro. Pensou que teria uma longa noite… não podia deixar para depois da hibernação a leitura daquilo que agora carregava debaixo do braço. O inverno começaria na próxima terça-feira.


Texto e arte de Alan Klein


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